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Foto do escritorClóvis Nicacio

Calor, mato e morte


No mês do terror, uma aventura diferente.


Na esquina da Amazônia
Na esquina da Amazônia

Os dois veículos avançavam pela trilha aberta na mata como se estivessem em uma pista asfaltada. Levavam oito homens com aparência de caçadores, musculosos e queimados de sol, quatro em cada veículo. Nenhum deles se importava com os sacolejos, o calor ou a poeira, pensando unicamente em chegar logo. Estavam acostumados a correr por trilhas estreitas. Os animais, pássaros e insetos evitavam a comitiva, se calando e fugindo, talvez afugentados pelo barulho dos motores. Nem mesmo as moscas se sentiam atraídas para as manchas de sangue ainda úmido, na traseira do segundo jipe.

O sol permanecia alto quando chegaram à Fazenda Traíra Graúda, o destino da expedição. Pararam os dois veículos no pátio em frente da Casa Grande, na sombra de uma enorme seringueira, ao lado da pequena vila protegida pela construção central. Os recém-chegados pareciam indiferentes ao calor de quase quarenta graus, já que nenhum estava se abanando com o chapéu, como seria costumeiro.

Dois peões da fazenda se dirigiram aos forasteiros. Após os cumprimentos habituais, o líder dos visitantes revelou não ser tão insensível, falando um espanhol atrasado para parecer português.

— Mi gente tiene sed. Ustedes pueden ceder un poco de agua?

— Tem um poço lá atrás da senzala, moço. A agua é limpa e bem fresquinha. Eu levo vocês lá.

Como se fossem treinados especialmente para isso, quatro homens pegaram dois galões em um dos jipes, um aparentemente vazio e o outro pesado, e seguiram o peão na direção do que parecia ser a segunda maior construção, depois da Casa Grande. Os demais, incluindo o líder, permaneceram perto dos veículos e do segundo colono. Vários outros moradores da vila, principalmente os de origem indígena, pareciam intimidados pelos visitantes, fechando janelas e se escondendo.

O líder voltou a falar:

— Mi nombre es Napoleón Manoel. Me están esperando para el capitán.

— O Capitão avisou da sua chegada, moço. Disse para levar o senhor até a Casa Grande, assim que botasse pé na fazenda. Podemos ir?

Desta vez, um dos homens acompanhou Napoleão Manuel, enquanto os outros dois permaneceram vigiando os veículos, reforçando a aparente disciplina militar.

Na Casa Grande, como é chamada a sede da fazenda, o Capitão Ramiro Caldas Rodrigues, um militar reformado do Exército Brasileiro, grisalho e beirando os cinquenta anos, com a mesma compleição física dos visitantes, observava o movimento pela janela, desde que ouviu o barulho dos veículos. Estava curioso para conhecer o novo comprador da propriedade, com quem só havia conversado pelo rádio de ondas curtas.

Finalmente havia cedido às pressões da esposa, Dona Conceição, desesperada para abandonar o isolamento em que viviam. A fazenda, bem no coração da Amazônia, havia sido recebida de herança dos pais dela. Fica há cem quilômetros ao sul do povoado mais próximo, Remate de Males, situada entre os rios Itaguaí e Ituí, estando longe de tudo, praticamente na confluência das fronteiras entre Brasil, Peru e Colômbia.

Encontrar aquele comprador foi um golpe de sorte inacreditável.

Três meses antes estava no armazém do povoado, comprando mantimentos, quando ouviu um homem com sotaque castelhano perguntando por propriedades à venda. Até aquele momento, não acreditava que conseguisse se livrar da fazenda, mas mesmo assim entrou na conversa. O homem apresentou-se como o emissário de um rico latifundiário peruano, procurando terras no lado brasileiro. A conversa evoluiu para um negócio fechado com o chefão, através do rádio.

Na semana anterior um avião monomotor havia sobrevoado a fazenda, tirando fotografias para o peruano, confirmando as conversações. Confirmou o interesse, já que estavam fora de qualquer rota aérea, mesmo daquelas usadas pelo SIVAM, o programa militar de vigilância da Amazônia.

Dona Conceição não conseguia disfarçar a ansiedade. Se aproximando dos quarenta anos, sonhava em viver na Europa, onde poderia criar o filho no meio da civilização. Ramiro Junior estava com dez anos e destinado a um futuro como peão se não saíssem daquele fim de mundo. O peruano não regateou o valor pedido pela enorme fazenda, cuja área chegava a um milhão, quatrocentos e cinquenta acres, equivalente ao tamanho de Brasília, mesmo estando com oitenta por cento de mata nativa. Se tivesse uma área cultivada maior valeria mais, embora a quantia seja suficiente para garantir uma vida confortável na Europa, por muitos anos.

Os três membros da família Caldas Rodrigues estavam com as malas prontas, só aguardando a assinatura da papelada para sumirem da mata.

O Capitão seguiu até a varanda frontal receber o peruano, pessoalmente, numa deferência a que não estava acostumado. Geralmente os visitantes que o procuravam ficavam aguardando, até que resolvesse atendê-los.

— Buenas tardes, señor Napoleón.

— Buenas. Si lo prefiere, podemos hablar en portugués. Preciso voltar a conversar neste idioma. Faz tempo que não o uso.

— Estou surpreso. Não sabia que conhecia nossa língua.

— Conheço muitas línguas, incluindo alguns dialetos indígenas. Em verdade, tenho origem europeia, sou da Espanha, embora me sinta um cidadão amazônico. Este é Juanito, meu escolhido para ser o capataz aqui.

O colono local se afastou a um gesto do Capitão, quando este conduziu os novos amigos para dentro da casa. Dona Conceição e o menino foram apresentados ao passarem pela sala, a caminho da biblioteca. Juanito é aquele que iniciou as conversas no armazém, há poucos meses. Devia estar ansioso para ser capataz, pois observava tudo com atenção excessiva. Avaliou a mulher e o menino de uma forma que quase pareceu obscena. O Capitão estranhou, mas não comentou nada, certo de que a esposa gorda e o filho balofo nunca seriam interessantes para nenhum outro além dele mesmo. Ao contrário de algumas índias jovens que ele teria de abandonar.

No isolamento daquela fazenda cercada de floresta por todos os lados, com o tempo, os moradores da Casa Grande acabaram por formar uma biblioteca muito rica, cheia de livros dos mais variados assuntos, desde a colonização da Amazônia até manuais de artesanato. Napoleão ficou encantado, parado por vários minutos lendo os títulos de alguns das centenas de livros.

— Gosta de ler, senhor Napoleão?

— Sou apaixonado por livros. Leio tudo o que me cai à mão. Sabia que em 1561 o Tenente Lope de Aguirre, numa expedição a serviço do Rei de Espanha, matou o próprio comandante, Capitão Pedro de Urzua e se perdeu aqui nesta região? Foi parar no que hoje é o litoral da Venezuela. Conheço a história de Orellana, Pinzon e outros conquistadores espanhóis como se os tivesse conhecido pessoalmente.

— Então somos dois apaixonados. Infelizmente para mim, não tenho como levar estes livros. Serão todos seus, assim que terminarmos nossos negócios.

— Pretende partir logo?

— Sim, senhor. Minha esposa está muito ansiosa. Se possível, vamos amanhã com o nascer do sol, para Manaus, depois Rio de Janeiro e Lisboa. Já despachamos tudo o que havia de mais pesado e volumoso. O que resta pode ser levado em cavalos até Remate de Males, onde pegaremos o vapor para Manaus. A propósito, como conseguiu chegar até aqui, de jipe?

— Viemos pelas trilhas desde o Rio Itaquaí. Tenho uma barcaça ancorada lá, com alguns equipamentos pesados e outras duas a caminho. Tenho pressa em tornar esta fazenda produtiva.

— Me alegra saber disso. Se não for muita indiscrição, posso perguntar o que vai plantar?

— Não me importo em dizer, mas não sei se realmente vai gostar ao saber.

— Já tentei várias culturas. As que melhor se adaptaram ao calor foram tabaco e feijão. Mas devo avisar que o custo é alto, principalmente para transportar. E tem a parte ambiental, que limita a área desmatável.

— Sei de tudo isso. Tenho outras três fazendas no Peru e uma na Colômbia. Não apenas leio muito, mas também conheço línguas nativas. Aprendi técnicas de plantio seculares com os índios, que resolvem muitos problemas. Por exemplo, posso plantar entre as árvores sem derrubá-las. Aumenta a área cultivável sem chamar atenção das autoridades e diminui a necessidade de irrigação. O fato desta fazenda estar fora das rotas aéreas me ajudou a decidir. Uma das primeiras coisas a fazer aqui é criar uma pista de pouso, para facilitar a movimentação sem depender do rio. Vamos demarcar o local amanhã mesmo.

— O que pretende plantar mesmo? Pode dizer, sem receio.

— Ópio e marijuana.

— Imaginei, pela preocupação com as rotas aéreas. Não me importo com o que acontecer aqui, depois que eu estiver na Europa.

— Neste caso vamos fechar logo o negócio. Creio que vai entender porque não gosto de trabalhar com bancos. Trouxe o valor que pediu em dinheiro vivo. Dólares americanos.

— Ah, agora entendo porque deixou dois homens vigiando os jipes. Estão protegendo o dinheiro.

— Não, o dinheiro está guardado numa clareira perto daqui. Esses homens que me acompanham, são de minha confiança absoluta e fazem apenas a minha segurança. Não me julgue mal, só posso trazer uma quantia desse porte quando tiver certeza que tudo está resolvido.

— Entendo. Então vamos assinar a papelada.

Foram interrompidos por leves batidas na porta. Dona Conceição entrou com uma jarra de refresco gelado e três copos altos, colocados na mesa no centro da biblioteca. Novamente, Juanito não tirou os olhos dela.

O Capitão aproveitou a presença da esposa para questionar o visitante:

— Senhor Napoleão, como esta deve ser nossa última noite nesta casa, se importa de pernoitar no quarto de hóspedes? Minha esposa vai mandar preparar tudo. Temos alojamentos para todos os seus homens.

— Agradeço a preocupação, mas se isso não o ofender, ficarei com meu pessoal. Vamos acampar na clareira e comemorar. Pegamos uma capivara no caminho daqui e a trouxemos para fazer um churrasco a moda de caçadores. Aproveito para convidá-los, ao Capitão e sua família, para participarem da comemoração. Esta noite teremos lua cheia, ideal para festas ao ar livre.

Os olhos do Capitão se animaram. Um churrasco no meio da mata, na última noite, seria um encerramento com chave de ouro, para todo o tempo de isolamento.

— Me parece uma excelente ideia. Permita-nos levar refrescos e pães quentes. Nossa cozinheira pode assá-los agora mesmo. E claro, uma excelente cachaça artesanal, feita aqui mesmo, para os homens.

— Seria um prazer. Traga a cozinheira e os dois colonos juntos, se quiser. A capivara é das grandes, teremos carne para todos. Só aviso que precisamos terminar antes da meia noite, para que possamos levantar cedo amanhã.

Dona Conceição foi instruída a chamar a cozinheira e fazer os últimos preparativos. Quando ela saiu da biblioteca, Napoleão ordenou que Juanito fosse buscar o dinheiro enquanto os últimos papeis eram assinados. Minutos depois ouviram a partida sendo acionada em um dos jipes e o barulho do motor se afastando.

Meia hora depois o Capitão recebeu três enormes malas impermeáveis cheias de dólares, em troca dos documentos assinados.

— Senhor Napoleão, parabéns. A Traíra Graúda e tudo o que está nela pertence ao senhor, de agora em diante.

Brindaram com doses de conhaque, de uma garrafa que estivera guardada por anos, esperando por uma ocasião especial.

— Capitão, devo lhe pedir licença e voltar para meus afazeres. Preciso fiscalizar a organização do acampamento, com as fogueiras e tudo o mais, antes que escureça. Como sabe, mesmo com lua cheia, a floresta se torna muito escura quando anoitece. Estaremos na clareira há dois quilômetros daqui, na trilha que segue para o norte. Quando chegar perto verá nossas fogueiras.

— Conheço o lugar. Se tivesse avançado mais quinhentos metros fora da trilha, teria encontrado um igarapé cheio de lambaris criados e muitas cobras. Já levei Junior para pescar lá.

— Obrigado pelo aviso. As cobras não serão problema. Serão afugentadas pelas fogueiras.

— Estaremos lá, depois que escurecer.

Com a conversa e os negócios encerrados, Napoleão e Juanito voltaram para os jipes. Assim que o grupo entrou novamente na trilha, a caminho da clareira, Napoleão interrogou os que ficaram conversando com os colonos:

— Completaram o levantamento?

Um dos grandalhões, pela hierarquia o que possuía mais autoridade abaixo de Juanito, foi quem respondeu.

— Sim, Rei Napoleão. Como o senhor previu, a cachaça fez os colonos soltarem a língua como maritacas. Tem seis famílias morando na vila, formando um grupo com cerca de vinte pessoas. Outras dez famílias moram em taperas espalhadas pela propriedade. Possuem poucas armas de caça, antigas. Soubemos de oito índios que fugiram para a floresta, assim que chegamos.

— Esses malditos índios, parece que têm um sexto sentido contra nós. Vamos ter que caçá-los durante a madrugada. Se estão apavorados será fácil farejá-los, mas ao mesmo tempo podem se tornar perigosos quando acuados. Cada um de nós pega um rastro, mas cuidado com eles.

Juanito questionou:

— Por que o cuidado, abuelo? Mesmo que estejam armados, não oferecem perigo. Essas armas antiquadas que o pessoal daqui usa não significam nada.

— Não é bem assim, Juanito. Os índios destas bandas usam flechas envenenadas. Conhecem curare desde antes do descobrimento. Eu fui flechado uma vez, quando ainda estava com Pinzon, acho que em 1496. Para minha sorte o índio estava sozinho, apavorado. Acabei com ele. Mas fiquei mais de uma semana com dores horríveis e perdi a capacidade de me transformar. Minha fêmea, na época, me entupiu de ervas e de chás, orientada por um Pajé, que podia ser um charlatão desconhecendo minha natureza ou realmente tinha outros conhecimentos, talvez querendo lucrar de alguma maneira com minha morte. Se tinha poderes, posso ainda estar vivo por causa dele, depois de passados mais de quinhentos anos.

— E por essa razão se tornou nosso Rei. Devemos agradecer a essa fêmea. Ela também continua viva?

— Não. Ela viu que eu estava muito doente e talvez não sobrevivesse, então começou um caso com o Pajé. Quando melhorei, passado um mês, depois de recuperar minhas capacidades, matei os dois. Comi o coração do bruxo, o que deve ter me dado mais algum poder, talvez a longevidade. Respeito os índios, são guerreiros competentes com conhecimento das florestas e dos tesouros que elas nos dão. E cada vez mais desprezo os brancos.

— Mas fez negócio com esse Capitão.

— Juanito, sentiu o cheiro desta terra? É fértil, abundante e generosa, um verdadeiro tesouro. E aquele Capitão a trocou por um punhado de papel sujo e malcheiroso. É certo, brancos não conhecem o valor dos tesouros que possuem. Ouviu o que ele disse. Pelas leis deles, os dólares nos dão a posse de tudo que existe nesta propriedade. Portugueses teriam usado uma frase mais bem construída: “Quando partirmos, o que deixarmos será vosso”. Cumprimos as leis deles. Agora vamos aplicar as nossas. Vamos tomar posse do que nos foi dado.

— Conseguimos a agua para lavar a capivara. Estará pronta em pouco tempo. Só falta a lenha para acendermos as fogueiras. Não entendo esse costume. Lavar a carne remove metade do sabor.

— É para eles, Juanito, não para nós. Deixe que comam o quanto puderem. Ofereça toda a cachaça que trouxemos e deixe que bebam a deles. Amacia a carne e os torna descuidados. Não quero gritos, até controlarmos toda a região. Já podemos fazer a partilha. O Capitão trará a esposa, o filho, a cozinheira e dois colonos. Depois que devorar o coração do Capitão, todos os despojos dele me pertencem, incluindo a família, as posses, os empregados e o nosso dinheiro de volta. Usaremos o dinheiro para cultivar essa terra. Por ser o Rei, tenho direito à melhor parte, então fico com o garoto. Pelos bons serviços ao descobrir este local, você pode ficar com a mulher só para você. Vi como a gordura firme dela te atraiu. Divida o corpo do Capitão e dos demais entre nossa equipe. Não esqueçam que depois vamos caçar os índios fujões, antes que avisem as tribos.

— Nada mal para nosso primeiro dia em terras brasileiras.

— Amanhã avisaremos as outras matilhas. Já poderei usar meu novo título. O Capitão Napoleão Manuel, Rei dos Lobisomens do Brasil, tem uma nova área de caça, do tamanho da Capital do País. Os outros reis vão se morder de inveja. Gosto disso.

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